Sempre senti que é difícil ter sucesso ou sentirmo-nos realizados se não nos identificamos com a empresa para a qual damos todos os dias oito (ou mais) horas da nossa vida. E esta é uma afirmação que, assim que entrar na vossa consciência, talvez vos faça relativizar muito esta questão do querer um emprego estável, de mudar de emprego, de procurar realização noutras coisas…
Grande parte dos motivos porque muitas das pessoas que conheço se sentem tão infelizes nos seus empregos está relacionado meramente com questões de valores. Porque é uma chefia tirana, porque não há respeito pela vida dos funcionários, porque bom empregado é aquele que dedica a sua vida ao emprego, porque bom empregado tem horas de entrar mas não tem horas de sair, porque a empresa trata os trabalhadores como robôs na filosofia de que não há ninguém indispensável e se uma pessoa não está contente pode sair porque entra outra (e isso cria motivação?)… a lista poderia continuar.
E isto está simplesmente relacionado com os valores das chefias. É por isso que há tantas empresas com uma rotatividade louca de empregados em todas as áreas. Encontrar o emprego ideal que faz um match perfeito connosco é como encontrar o amor. Tem de haver fusão de ideais, valores, objectivos de vida e as duas partes estarem na mesma sintonia.
Há muitos anos – costumo brincar e dizer: noutra vida… – tive vários empregos em que não havia sintonia entre mim e a direcção. Nunca senti que o problema fosse meu. Eu via as coisas de outra forma e tinha outros valores profissionais que não combinavam com os valores de quem estava acima de mim. E isso não tem mal nenhum. Eu apenas não era a pessoa ideal para eles. E eles muito menos para mim.
A organização que parecia um circo
Trabalhei numa grande associação portuguesa que parecia o circo. Via tantas coisas que para mim, ainda jovem acabada de sair da faculdade sem qualquer experiência, já eram tão absurdas que não conseguia contemplar como uma organização de tamanho poder e prestígio funcionava assim. Sempre que alguém dava uma sugestão para melhorar, a chefia rejeitava. Os trabalhadores eram tratados abaixo de cão, trabalhavam com contrato mas a recibos verdes, faziam turnos de mais de doze horas e era irónico que uma organização que apoiava mulheres vítimas de violência doméstica tratasse as trabalhadoras na cultura do medo e do bota-abaixo. E as mulheres que lá iam (as “vítimas”) recebiam tudo menos o apoio que nós – a equipa auxiliar e que mais tempo passava com elas no dia a dia – comentávamos que deveria existir porque sentíamos na pele tudo o que falhava. Quando entrei na equipa de uma casa abrigo (com mulheres e crianças retiradas de situações de risco), o circo tornou-se maior. Cheguei a escrever na minha tese (que se focou na negligência materna em situações de violência doméstica) que comparava aquele residência a um armazém onde as mulheres (e filhos) eram depositadas e deixadas ao Deus-dará até arranjarem um emprego qualquer, terem dinheiro e saírem de lá para dar a vaga a outras: sem apoio psicológico e emocional, sem formação, sem oportunidades, sem orientação, sem autonomização numa nova cidade onde tinham de aprender a viver.
Lembro-me de um episódio em que um dos membros da direcção (e psicólogo) se deslocou à casa abrigo para uma sessão de grupo nocturna e as mulheres terem rejeitado. Ninguém tinha à vontade com ele, o senhor não criava relações com as pessoas e aparecia lá de vez em quando para picar o ponto. E ele andava de porta em porta (dos quartos) a obrigar as mulheres a sair dos seus espaços privados (o único que tinham ali) como se a sua vontade própria ali de nada servisse. Nem a chave da porta da rua elas tinham. Nem telemóveis. Nem nada. E até para ir ao café da esquina tinham de pedir autorização.
Quando apresentei a minha ideia de tese, a própria direcção rejeitou e chegou a dizer que eu não tinha capacidade para escrever uma tese com aquela estrutura. Depois de pensar no que fazia, percebi que ou abdicava da minha ideia, ou tinha de escrever uma tese com o trabalho de campo anónimo porque eles não me tinham autorizado em usar a minha experiência de campo naquela organização. A universidade aceitou que fosse anónima porque sabiam que estava ali há mais de um ano. Escrevi. Tive 19. Obrigada. A rotatividade de empregados era tão grande que ao fim de um ano e meio (e depois de terminar a tese) percebi que o problema não era meu, era mesmo deles e saí. Já se passaram dez anos. Se trabalham de forma igual? Não faço ideia. Mas eu não concordava com os valores da organização e com a forma de trabalharem e, como não era ninguém ali, só me restou sair.
A orientadora com quem não aprendi rigorosamente nada
Noutra altura, ganhei uma bolsa do estado e fui trabalhar para a ARS num projecto com a Segurança Social de Sintra. Parecia tudo fixe, menos a parte em que comecei a perceber que estava a trabalhar numa junta de freguesia do mais pobre que já vi e onde convivi de perto com famílias com situações de vida de merda, que sobreviviam com subsídios de 250€ por mês, com doenças em lista de espera infinitas para operações, com três e quatro filhos e a viverem de rendimentos do estado, com problemas de toxicodependência, idosos sozinhos…
A pessoa que estava acima de mim (era assistente social), e supostamente a orientar-me, era desumana, não tinha qualquer empatia para com as pessoas e cheguei mesmo a odiá-la e a chorar na casa de banho. Lembro-me de situações em que as pessoas vinham até nós e ela dizia: se não tem marcação, não posso atender. Mesmo que não estivesse a fazer rigorosamente nada. E quando me metia ao barulho e dizia que não sabíamos em que condições as pessoas tinham vindo (muitas eram idosas e faziam jornadas a pé, outras pediam dinheiro emprestado para apanhar um autocarro até lá), ela dizia simplesmente que se começasse a atender toda a gente que aparecia, não fazia mais nada da vida. E eu pensava: mas é para isso que estás aqui, como consegues ver pessoas em condições de vida de merda e rejeitar o seu pedido de ajuda apenas porque não telefonaram a marcar um atendimento? Não foi isso que, de certeza, te ensinaram na faculdade.
A meio do contrato, desenvolvemos um projecto interno que foi feito por mim e por um rapaz que também trabalhava lá (e sem ele lá eu teria, sem dúvida, dado em maluca). O projecto foi aceite pela direcção e a orientadora assumiu que tinha sido feito por ela. Sem nunca ter colaborado em nada ou sequer ter posto os olhos na matriz do projecto.
Quando chegou ao fim da bolsa, tive de fazer uma espécie de relatório para ser avaliado e decidido pela ARS se seria contratada ou não. Eu já tinha decidido que não queria mais lá ficar e aproveitei esse relatório para expor os pontos fortes e fracos do departamento, onde abordei todas estas coisas que se faziam erradas.
Sabem o que aconteceu? Quem iria avaliar o meu relatório era alguém da direcção do departamento onde eu estava que, by the way, era companheira de cafés depois de almoço da tal orientadora. E recebi uma carta registada onde diziam que a minha avaliação era de 12 e, como tal, o contrato não seria renovado. Mas tinha X dias para responder à avaliação. Eu respondi à carta e afirmei que era irónico uma pessoa que tinha acabado o curso com uma bolsa de mérito e tinha tido 19 numa tese se ter, afinal, transformado numa tão má profissional apenas porque teve a audácia de expor os pontos fracos daquele departamento, o que acontecia à porta fechada e sugerir novas formas de trabalhar.
Respondi isto porque não queria voltar, porque não tinha nada a perder e porque senti que a minha voz tinha de ser ouvida para, pelo menos, a próxima pessoa no meu lugar conseguisse trabalhar melhor ali.
Não digo a ninguém para se despedir. Mas digo para nunca fecharem portas. Para procurarem coisas melhores. Para acreditarem nas vossas ideias e no vosso potencial. E, acima de tudo, para acreditarem mais vocês.
Isto são duas histórias isoladas. Também já trabalhei com pessoas fantásticas e chefias maravilhosas com quem aprendi e melhorei a minha forma de ser e de trabalhar. Mas foi por ter trabalhado em empresas com valores diferentes dos meus que percebi que jamais iria ter sucesso ou realização ali. E a decisão de sair, de procurar algo melhor, de acreditar no meu potencial e, no final de contas, de ter mudado de vida e de área profissional (hello jornalismo) também foi graças a esses trabalhos de merda e a todas essas chefias com as quais não me identifiquei.
Podemos passar anos em empregos que até gostamos assim assim porque os colegas são porreiros mas onde sabemos que nunca vamos evoluir. Isso não nos dá realização. Podemos passar anos em empregos de merda porque já nos habituámos e é melhor isso do que nada. Isso não nos dá realização. Podemos passar anos em empregos com chefias que tratam mal os empregados e onde vemos todos os dias colegas a entrar e a sair. Isso não nos dá realização. Podemos passar anos em empregos onde nos sentimos uma merda mas, pelo menos, há um cheque ao final do mês. E, claro, isso não nos dá realização.
Não digo a ninguém para se despedir. Mas digo para nunca fecharem portas. Para procurarem coisas melhores. Para acreditarem nas vossas ideias e no vosso potencial. E, acima de tudo, para acreditarem mais em vocês.
Nenhum emprego vale a nossa vida.
E nenhum emprego vale o nosso bem-estar, saúde e felicidade.
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