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Foto do escritorHelena Magalhães

#4 O regresso da Clarice – a maluca da esposa


Nos meus primeiros meses aqui a trabalhar, percebi que isto poderia funcionar como uma espécie de um reality show. Vivíamos num ambiente tão opressivo que comecei a vê-lo como um estudo de caso da condição humana. E uma das coisas que me apercebi foi que em ambientes onde há um ódio comum – neste caso, o Satanás – toda a gente se acaba por unir. E caramba, como nos divertíamos ali. Pode parecer confuso para muita gente porque razão aceitávamos ser maltratados desta forma. E também as minhas amigas e os meus pais me questionaram isso. Eu própria também me questionei muitas vezes – a maioria delas quando estava a trabalhar às três de manhã e fazíamos uma pausa para ir à merda do McDonald que era a única coisa perto aberta àquela hora miserável. E eu simplesmente não como McDonald. O meu pai costumava dizer que, quando a fome aperta, não há tempo para esquisitices. E foi exactamente isso que aprendi naquela altura. E não sei porque não me despedi simplesmente. Mas a verdade é que numa empresa fantasma em que o patrão aparece às seis da tarde, aqueles dois ou três dias em que não dormíamos acabavam por ser vividos numa espécie de bomba-relógio em que estávamos ali todos para o mesmo: suportar tudo, tolerar tudo, aguentar tudo. Sorrir e acenar como os pinguins. Se ele diz que o céu é verde, quem é que se importa com a merda da cor do céu? Esta é mesmo a revista dele e eu entrei no registo de quase toda a gente aqui: queria receber o meu ordenado e que ninguém me chateasse. E quando as noitadas acabavam… tínhamos mais três semanas de diversão na feira popular.

Foi no meio desta pasmaceira a meio do mês que aconteceu uma situação que veio mudar tudo. A mulher do Satanás desaparecida no tempo e no espaço apareceu. Eu sempre achei que ela fosse um mito urbano, daqueles que são contados de boca em boca. A tirana da mulher. A maluca da mulher. A burra da mulher. Ouvi de tudo. Uma manhã, cheguei lá com a minha boa disposição habitual com a Sofia da moda que se encontrava sempre comigo no metro e estava toda a gente numa espécie de transe. Nós olhámos uma para a outra e encolhemos os ombros. Devíamos ser as pessoas mais aluadas ali.

     – A Clarice vai voltar – disse-me Carlota mal me sentei.    – Quem é essa? – perguntei enquanto dava uma trinca no croissant que tinha comprado na pastelaria da rua.      – Quem é essa? – gritou ela – É a mulher dele. E acredita, não vais gostar dela.      – Porquê? – questionei com a boca cheia.      – Porque eles os dois juntos são o demónio em pessoa. Imagina tudo o que de mau um ser humano pode ter? Eles os dois conseguem ser ainda piores.      – Credo – bufei – que exagero. Se calhar a senhora vem em paz. Carlota riu-se à gargalhada.      – E a Vera dentes de rato? – interrompi – se a esposa vai voltar o que será da amante? Vai ser lindo ver o que lhe vai acontecer.

E foi de facto lindo. Porque a feira popular tornou-se de repente ainda mais divertida. O primeiro vislumbre que tive da Clarice foi por volta da hora de almoço quando ela apareceu. Estávamos praticamente todos no escritório sentados a comer dos nossos termos da escola primária com uma vela anti-cheiros acesa e ela entrou no open space com um casaco de pelo comprido branco e preto a esvoaçar atrás dela e um top de renda por baixo. Estavam tipo 30 graus. Ela andou por ali a dizer olá a toda a gente e a apresentar-se como se ninguém soubesse quem ela era. Olá, sou a Clarice, a diretora geral, dizia sempre que falava, tentando com todas as forças marcar uma posição. Tinha cabelos compridos e vestia roupas de marca absolutamente estonteantes. Até eu, que não ligo rigorosamente nada a moda, conseguia perceber que, ao pé dela, todas nós parecíamos gatas borralheiras. Quando se aproximou de mim, voltou a repetir a mesma lengalenga da directora geral e eu sorri e apresentei-me. E ela lá foi à vida dela, voltar a recuperar o seu antigo gabinete que até hoje se tinha mantido de estores fechados para ninguém ver lá para dentro. Carlota, que já tinha trabalhado com ela no passado quando eles ainda estavam juntos, disse-me que o melhor a fazer era tentar passar despercebida porque ela era manipuladora, venenosa e escolhia sempre algumas pessoas com as quais fingia ser amiga para poder controlar. Eu tive a certeza que nunca iria ser uma dessas pessoas porque não tinha nada para lhe dar. Mas como me enganei… mas isto fica para depois. A meio da tarde, Clarice voltou a aparecer ao pé de nós, sentou-se em cima de uma das mesas e disse-nos para nos reunirmos em redor dela. O espectáculo ia começar.

     – A sensação que me dá – começou ela – é que eu cheguei aqui e isto parece um infantário onde todas as criancinhas foram deixadas ao deus-dará – começámos a olhar todos uns para os outros. Conseguia ver, por trás dela, a Anita da moda a revirar os olhos e a fazer gestos com as mãos para as do design. Ela continuou – quero saber tudo o que se tem passado na minha ausência porque tem havido claramente aqui um problema de gestão. E eu voltei para por isto em ordem. Para voltar a transformar esta revista naquilo que ela é: a melhor revista de Portugal. Eu sei que sem mim as coisas descambaram e nos últimos meses esta revista tem saído para as bancas uma merda. E foi por isso que aceitei voltar. Vocês precisam de mim.

Eu estava boquiaberta e estava a tentar olhar para Carlota sem dar muito nas vistas. Esta senhora que ninguém colocava os olhos em cima há meses – eu então nunca a tinha visto mais gorda o que até era irónico porque a senhora era magra até doer – tinha acabado literalmente de nos chamar incompetentes. Ela – a grande directora geral – tinha voltado para nos salvar e para nos ensinar a fazer uma revista, o que, by the way, fazíamos há meses. Sozinhos. Ela continuou a insistir que queria saber tudo o que estava a correr menos bem e que poderia ser melhorado. Como ninguém dizia nada, eu achei por bem aproveitar a situação para referir algo que realmente me incomodava. E se ela era tão manipuladora como diziam, eu também podia jogar um bocadinho.

     – Não podemos comer aqui e somos obrigados a trazer termos com o almoço – referi a medo com todos a olharem para mim – quero dizer, ok, não tem problema mas é algo que eu gostaria de mudar e como disse que podíamos falar consigo…      – Eu reparei nisso quando cá cheguei e estou absolutamente do vosso lado – interrompeu-me ela – a partir de amanhã, podem voltar a usar o microondas e a fazer as vossas refeições normalmente. Toda a gente suspirou de alívio e começaram a olhar uns para os outros à espera da próxima pessoa que iria avançar. Na verdade, toda a gente pensou o mesmo que eu: já que nos estavam a abrir a porta, iríamos tirar o máximo partido disso.      – Eu tenho tido problemas com a Vera, a diretora de marketing, que me envia emails durante a madrugada e informou-me que eu tinha de lhe responder na hora – disse Paula do marketing.      – Essa senhora não vai voltar – respondeu Clarice dobrando as pernas em cima da mesa – então, não tens que te voltar a preocupar com isso. O novo diretor de marketing vai chegar em breve. Voltámos a olhar uns para os outros. Sentia que a qualquer momento os olhos iam saltar-me das órbitas de tanto os abrir numa espécie de comunicação mental com elas.      – Vamos continuar a fazer directas nos fechos? Espero que agora que finalmente voltou as coisas melhorem – disse a sonsa da Marlene do design.      – Comigo aqui as coisas vão funcionar como sempre deveriam ter funcionado. Eu voltei para isso. Começámos todos a sussurrar uns para os outros e depois desta reunião à volta da mesa em que só faltou cantarmos o Kumbaya My Lord, voltámos para os nossos lugares.

     – Não esperes mudanças – disse-me Carlota quando nos sentámos – eu já trabalhei com ela cá e as coisas eram exactamente iguais. Aliás, eram piores. Porque eles os dois juntos trazem ao de cima o pior de cada um. Foi o casamento mais disfuncional que vi na vida.      – Mas pode ser que agora mudem – respondi, esperançosa.      – Ouve – disse Carlota – tu não a conheces. Ela ainda é pior que ele. E é pior porque é uma tipa que caiu aqui porque se casou com ele. Não sabe minimamente o que faz, não saber escrever mas acha que vai ganhar o Nobel da literatura, dá erros ortográficos atrás de erros ortográficos, é mentalmente desequilibrada e vive às custas do dinheiro dele, o que lhe dá uma certa sensação de segurança e poder que nunca teve na vida porque, coitada, ainda é mais burra que a Vera dentes de rato.       – Achas que a Vera já não vai voltar mais? – perguntei, abrindo o meu email.      – Dou uma semana para ela voltar e o circo começar – respondeu, encostando-se na cadeira.

Quando abri o meu email tinha um do Satanás. Dizia-me que já devia ter conhecido a Clarice e que, com ela, iria aprender bastante sobre jornalismo. Deveria contar com ela para tudo e reportar todas as minhas dúvidas porque ela iria voltar a ser não só a diretora geral mas passaria a chefiar todo o conteúdo editorial. É das mulheres mais inteligentes no jornalismo português, referia ele no fim. Mostrei a Carlota que quase se engasgou de tanto rir.

— 

Quando o Roberto chegou para gerir o departamento de marketing na ausência da Dentes de Rato, as coisas mudaram de facto. Em primeiro lugar, era um homem mais velho no meio uma empresa já atafulhada de mulheres. E depois, já tinha trabalhado cá, conhecia bem os cantos à casa e veio trazer alguma estabilidade a este, segundo as palavras de Clarice, infantário. Por ter confiança com o Satanás, porque eram amigos pessoais, ele acabava por criar alguma paz porque chamava-o à razão em muitas coisas. A Paula, então, estava nas nuvens. O Roberto era divertido, deu-se bem com toda a gente e trouxe nova vida ao departamento de marketing que começou, finalmente, a funcionar decentemente sem a maluca da Dentes de Rato a debitar ordens sem pés nem cabeça com aquilo que, na cabeça dela, deveria ser “fazer o marketing”, como ela costumava dizer.

Num fim-de-semana, a Mariana ligou-me e disse que a Clarice lhe tinha enviado um email a dizer que ela teria de ir à redacção fazer uns cartazes que eles se tinham esquecido de pedir. Mas que cartazes seriam tão importantes a um sábado à tarde? Ela estava em Peniche a surfar e disse que não podia. Clarice foi uma simpatia e disse que compreendia. Meia hora depois, o Satanás começou a ligar-lhe insistentemente e Mariana disse-me que iria desligar o telemóvel porque já estava a ficar com uma crise de ansiedade com as chamadas constantes dele. Assim o fez e, sem poder falar com ela, pensei nela o fim-de-semana todo.

Na segunda-feira, soubemos que tinha sido a Marlene – a sonsa que se assumia como diretora do design – a dizer a Clarice para chamar a Mariana para o fazer no sábado. Que diretora de merda era esta que colocava as suas próprias colegas na linha de fogo? Na minha humilde opinião afirmei que ela deveria, no mínimo, chamar Clarice a atenção e dizer-lhe que não era uma urgência que necessitasse de ser feita a um sábado à tarde e que, segunda logo de manhã, elas assumiriam essa tarefa para estar pronta antes de almoço. Era a porcaria de um cartaz que iria ser usado durante a semana numa festa. Marlene riu-se e disse-me que não iria ser ela a contrariar Clarice e se ela lhe pedia um trabalho, ela mandava uma designer fazê-lo e estava-se nas tintas para o que essa designer estivesse a fazer. Foi neste exacto momento que percebi que a Marlene sabia muito bem o que fazer e como jogar. E que não tinha o cargo de directora por mero acaso. Ela nunca iria ficar do nosso lado – o lado da equipa – porque seria a primeira a entregar as nossas costas para livrar as dela.

No fim-de-semana seguinte, estávamos todos efectivamente no turno nocturno – como costumávamos gozar, como se fossemos médicos a fazer o turno da noite. E apesar de Clarice dizer que, com ela, as coisas iriam mudar, a única coisa que mudou foi que já não podíamos estar a ouvir música, a ler ou a ver filmes nos tempos mortos porque ela estava lá a deambular e a controlar o que fazíamos enquanto ela e o Satanás aprovavam páginas durante horas e horas e horas. E fumavam os dois que nem animais pelos corredores, deixando no ar um cheiro repulsivo e enjoativo a tabaco. Como é que ele poderia dizer que o cheiro da comida era nojento quando ele próprio destilava repugnância? A dada altura, deviam ser umas cinco da manhã, estávamos todos mais a dormir que acordado. Sem nada para fazer – porque os dois demónios tinham saído para ir comer a um hotel e iriam ficar lá a corrigir páginas -, eu estava a ver uma série no computador, outros dormitavam com as pernas na mesa e Mariana estava sentada no sofá a ler um livro. Clarice entrou de repente no escritório e, embora estivéssemos todos caídos pelos cantos, foi direita a Mariana no sofá.

     – Isto não é a esplanada menina – disse, dando um toque com o seu pé na perna de Mariana – para estar aí toda refastelada a ler. Mariana fechou o livro, colocou-o no sofá e olhou para ela.      – Não estou propriamente ocupada e, para não adormecer, tenho de fazer alguma coisa – respondeu, cruzando os braços.      – Mas quem és tu para falar comigo assim? – perguntou Clarice de forma histérica e, nesse momento, já estávamos todos acordados e chocados. Ela continuou com a histeria – Deves achar que és a estrela da companhia aqui deitadinha no sofá. Se não tens nada para fazer, se calhar não és útil a esta empresa, não achas? Mariana não disse nada e ficou a olhar para ela. Foi o mais sensato que poderia ter feito. Clarice deu uma volta sobre si própria e saiu pelo corredor a arrastar as sandálias de salto alto com as quais mal conseguia andar e a chamar pelo Satanás com uma voz birrenta. Eu jamais imaginei que o que sucedeu nos minutos seguintes alguma vez fosse possível. Se me contassem, eu não teria acreditado. Teria achado que era exagero. Que quem conta um conto acrescenta sempre um ponto. Mas o Satanás abriu a porta com força até ela bater na parede. Entrou pelo open space, foi direito a Mariana e aconteceu exactamente isto:

     – Ouve lá – disse ele, puxando Mariana pelo braço para ela se levantar do sofá – mas tu estás aqui a brincar? Mas tu achas que nós brincamos? Achas que tens que te ocupar para não dormir? Mariana estava de todas as cores. Eu pensei que ela iria desatar a chorar.      – Eu não disse isso – gaguejou – só disse que estou cansada… estamos todos cansados. E que como estávamos num momento de pausa à sua espera, estava a ler para me manter ocupada. Acho que a Clarice percebeu mal…      – Tu não és ninguém para dizer que a Clarice percebeu mal – gritou ele, interrompendo-a – a Clarice é a diretora geral e, se não a sabes respeitar, vais para a puta que te pariu. Ficou um silêncio espectral no escritório. Mariana ignorou-o, afastou-se do sofá e começou a arrumar a sua mala. Eu estava absolutamente em choque e Carlota estava a agarrar-me a mão por baixo da mesa.      – Eu não aceito que me falem desta forma – disse Mariana, enquanto abria e fechava gavetas.      – Olha minha puta de merda, tu vais para a rua. Vais já para o olho da rua e se não sais já, se te apanho lá fora parto-te as pernas. Tu não sabes quem eu sou. Mariana pegou no casaco e saiu.

Estávamos todos bloqueados nos nossos lugares. O Satanás ficou parado no meio do open space com Clarice no corredor encostada à porta do seu gabinete a sorrir. Compreendi o que Carlota queria dizer quando a chamou de manipuladora. Como Mariana lhe tinha negado trabalhar no sábado, ela tinha arranjado forma de isto acontecer. Que raio ela lhe tinha dito para o Satanás ter perdido o controlo desta forma?

Quando ele saiu do seu torpor, olhou para nós todos e disse para irmos para casa dormir e acabávamos tudo no dia seguinte. Ninguém se mexeu. Ele suspirou e foi-se embora pelo corredor. Roberto disse-nos que Mariana iria voltar e que ele iria conversar com o Satanás. Mas, na verdade, tive a certeza que Mariana não iria querer nunca mais lá por os pés. Começámos lentamente a arrumar as coisas e a sair. Eu olhei para Marlene e ela estava a rir-se e a conversar animadamente como se uma das colegas do seu departamento não tivesse acabado de ser insultada da forma mais assustadora e nojenta possível.

A partir desse dia, odiei-a. Iriam demorar dois anos até eu conseguir vingar toda a gente que ela tratou mal mas ainda muita água iria correr até lá chegarmos.


26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.

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