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  • Foto do escritorHelena Magalhães

#8 A Paula, uma caneta e uma folha de papel. E o fim do reinado de Marília


O Satanás chegou depois do jantar, entrou na redacção, nem disse água vai, nem água vem e chamou-me à parte para falar com ele.

     – Anda comigo lá abaixo para eu fumar enquanto falamos – disse-me.

E lá fomos nós pelo corredor até ao átrio do escritório. Ficámos à porta do elevador calados à espera que chegasse. Ele batia com o maço de cigarros na mão, preparando-se para a sua dose lenta (demasiado lenta) de morte antecipada por cancro do pulmão ou algo do género. Eu estava a olhar para as mãos a ver as peles dos cantos das unhas e a controlar-me para não as arrancar. Entrámos no elevador. Ele tirou o cigarro e prendeu-o entre os lábios, dando-lhe pancadinhas com o dedo como se chutasse berlindes. Eu estava a olhar para as botas e a observar a biqueira gasta. Saímos do elevador e atravessámos o lobby do edifício até às grandes portas duplas que davam para a rua. Fomos encostar-nos a um dos pilares, ele acendeu finalmente o seu fatídico cigarro, expirou para o outro lado e ficou a olhar para mim nos primeiros três ou quatro bafos que se misturavam com o frio da noite. Eu basicamente não fazia ideia do que o homem queria falar comigo. Podia imaginar claro – as coisas que Marília deveria ter dito de mim para que fosse despedida – e cá dentro passavam-me mil e uma coisas pela cabeça. Se calhar ia mesmo despedir-me e nem a bruxa me iria salvar.

     – O que é que se está a passar com a Marília? – perguntou-me finalmente.      – Não sei… – respondi, olhando para baixo. Oh Jesus!      – Podes falar comigo – disse, atirando com o cigarro para o passeio e tirando um outro do maço – é para isso que aqui estou. Não é para discutir contigo, é para perceber realmente o teu lado.      – A Marília literalmente ofendeu-me. Gritou para toda a gente ouvir ‘Tu achas que sabes escrever mas escreves uma merda’ – respondi. Estava a tentar manter uma postura mais ou menos credível e até um pouco distante, como se aquilo não me afectasse. Mas a voz tremeu-me e vergonha das vergonhas, começaram a cair-me lágrimas. Não é que estivesse triste, entendem? É daqueles momentos em que uma pessoa não sabe se está furiosa, se está nervosa, se está esgotada, se está frustrada. Todas estas emoções se misturam umas com as outras e contra a nossa vontade começamos a chorar. Eu, pessoalmente, não gosto de me mostrar frágil e tinha conseguido até então. Já tinha chorado muitas vezes, é certo, mas nunca em frente a ele ou da Clarice. Sempre no escuro da casa-de-banho. Mas era Marília a fazer-me a vida num inferno, os últimos dias da Paula, tudo tinha contribuído para esta vergonha ali no meio da rua.      – Tem calma – disse ele, atirando com o cigarro ainda a meio e puxando-me pelo braço para nos encostamos à parede mas com uma distância respeitável entre os dois – estou aqui para te proteger, caso ainda não tenhas entendido. Confia em mim…       – Desde que chegou, a Marília faz-me a vida num inferno. Está sempre tudo mal para ela, tudo o que eu faço é mau, está sempre com a conversa de que não sou jornalista, de que não sei o que faço – de repente, fiquei ligada à corrente e estava a sair-me tudo boca fora – E ouvi uma conversa dela ao telefone em que dizia que faltava pouco para eu e a Carlota sermos despedidas e ela iria colocar a pessoa com quem estava a falar aqui a trabalhar.

Aqui estava eu a chiba número um num total descontrolo da língua. Parecia que tinha sido possuída e estava tudo a jorrar de mim.

     – Ela não vai colocar aqui ninguém a trabalhar – interrompeu-me ele – vou dizer-te uma coisa para ver se tu ganhas consciência de como as coisas são aqui. Imagina que isto é uma corrida e está toda a gente na linha da partida. Tu és a mais nova, ninguém te liga muito. Estás da parte de fora e ninguém te vê como concorrente. A corrida começa e tu vais por fora e passas a meta antes de toda a gente e ganhas. É assim que tens que te ver porque como já te tinha dito, tu tens um dom, tens aí qualquer coisa em ti que funciona muito bem. Está ainda muito em bruto mas tens estado a explorar a tua forma de escrever.

Não graças a ele, pensei naquele momento. Não sei de que forma é que ele me estava a formar – como tinha dito que ia fazer. Mas ele continuou…

     – A Marília já falou comigo várias vezes e tentou à força mostrar que tu não funcionavas aqui. E de todas as vezes, eu disse-lhe que mais rapidamente saía ela do que tu. O que ela está a fazer é a tentar manipular-te e tens que ter consciência daquilo que vales e da forma como o teu lugar aqui está seguro. Compreendes?      – Acho que sim… – balbuciei – obrigada.      – Aproveito para te dizer que o teu contrato de seis meses acabou – disse ele – continuas feliz? Queres continuar aqui?      – Sim… – respondi.    – Então pronto, estamos resolvidos – sorriu e abriu-me a porta para voltarmos a entrar – para a semana assinamos o novo contrato.

Enquanto subíamos no elevador, o Satanás mexia no telemóvel, provavelmente tão constrangido com esta conversa emotiva como eu.

     – Depois de terminarmos a revista deste mês, vou ter uma conversa com a Marília e vou dizer-lhe para te pedir desculpa por tudo o que aconteceu este mês e avisá-la que se continua com as opiniões e as ofensas, está ela fora  – disse ele, à saída do elevador – para a semana diz-me se ela o fez ou não.

E foi assim que, depois de um mês de merda, o Satanás conseguiu literalmente mostrar-me um raro momento de empatia e sensibilidade. E foi exactamente neste momento que percebi a forma como ele sabia manipular tão bem as pessoas. Ele podia ofender, gritar raios e coriscos, ameaçar e rebaixar mas depois também sabia fazer-nos sentir especiais – as pessoas que ele queria, claro. Sabia dizer as palavras certas, dedicar-nos aqueles breves minutos a sós em que nos conseguia mostrar como éramos importantes para ele, para a revista. Como o nosso trabalho era fundamental. Como éramos… especiais. Se calhar a bruxa tinha razão. Se calhar, estava mesmo para ficar.

Mas eis o que se passou:


Depois de termos ouvido a conversa da Marília ao telefone com as suas amiguinhas jornalistas, compreendemos perfeitamente qual era o seu objectivo: tirar-me e à Carlota da redacção. Basicamente, ver-se livre de nós. E embora Carlota me dissesse que isso nunca iria acontecer, eu não estava tão segura assim. Carlota trabalhava há anos neste meio. Tinha sido jornalista de uma revista semanal, depois de uma breve passagem pelo Público tinha trabalhado na televisão e voltado para a imprensa para trabalhar aqui. Tinha currículo, era inteligente, estava ali há muito tempo e, acima de tudo, sabia demasiados podres para alguma vez a porem a andar contra a sua vontade. Mas e eu? Eu era uma mera não-jornalista (pelas palavras da Marília) que estava ali a tirar lugar aos verdadeiros jornalistas enquanto brincava às revistas. O meu tempo ali estava contado – passei o mês a ouvir isso.

Mas mal tinha tempo ou energia para pensar nisto porque a Paula do marketing estava na merda. Roberto tinha ido passar uma temporada ao escritório do Porto para trabalhar com a equipa de lá e, na sua ausência, a Vera dentes de rato voltou a infernizar o departamento de marketing. O que se passou foi muito simples: Paula tinha passado os últimos meses a trabalhar com Roberto e a responder apenas ao Satanás. Sem mais ninguém a dar-lhe ordens, ela tinha autonomizado o seu trabalho e já fazia grande parte dele por iniciativa própria. Vera entrou a matar e a querer que Paula a respeitasse e se submetesse novamente e hierarquicamente às suas ordens quando, enfim, não havia uma única pessoa que a respeitasse ali. Paula não deu o braço a torcer. Dizia que só respondia ao Satanás, ignorava as coisas que Vera lhe dizia e começou o circo – como se Paula fosse o novo saco de boxe de Vera que precisava de sentir que mandava em qualquer coisa, nem que fosse em Paula.

Vera começou por lhe dizer que estava proibida de sair sem a informar para onde iria. Não podia ir beber um café, não podia ir à casa de banho, não podia fazer uma pausa para fumar sem lhe pedir autorização. Paula ignorou todas estas ordens e disse que não estava na creche. Um dia, passou uma circular por toda a gente que dizia que as novas regras da empresa proibiam as pausas para fumar e para beber café, estando apenas estipulada a pausa da hora de almoço que deveria ser feita obrigatoriamente da uma às duas da tarde. Comentámos todos que, mais uma vez, Satanás era apenas um fantoche que cedia a todos os caprichos das malucas como se andássemos aqui todos a brincar. Algumas pessoas começaram a discutir que não iam assinar, que não concordavam com isto e com aquilo. Eu, pessoalmente, não fumava nem bebia café e estava-me pouco nas tintas para estas regras. Assinei a circular e continuei na minha vida porque já tinha Marília a infernizar-me o juízo e não tinha energia para abraçar uma luta que não era minha – apesar de estar totalmente do lado de Paula.

Toda a gente assinou. Mas toda a gente ignorou as ordens que lá vinham. Os cafés às onze da manhã continuaram bem como as pausas para fumar de duas em duas horas. E Paula – coitada – lá continuava na guerra de tronos.

     – Hoje de manhã levantei-me para ir à casa-de-banho e aquela estúpida levatou-se e perguntou-me ‘onde pensas que vais?’ – estava Paula a contar-me e a Alice durante o almoço – eu disse-lhe que ia à casa-de-banho e perguntei se ela queria vir atrás de mim e ela disse que sim.      – Ela foi contigo à casa-de-banho? – perguntei com uma gargalhada.      – E não é que foi mesmo? – respondeu Paula – e eu fiz questão de demorar imenso tempo lá dentro. Para ela pensar que estava a cagar ou algo do género. Levei o telemóvel no bolso e fiquei a ver o Instagram e ela lá fora. Conseguia ouvi-la também a mexer no telemóvel, provavelmente a mandar mensagens para ele a dizer mal de mim.      – E o que é que ela fez? – perguntou Alice.      – Sei lá – disse Paula a rir-se – deve ter ficado à minha espera porque agora é a minha babysitter. Só que eu fiquei muito silenciosa e ela devia estar encostada a tentar ouvir e, de repente, eu abri a porta e ela deu uma cabeçada na parede.      – Oh meu Deus! – rimos as três às gargalhadas. Eu perguntei: – e ela não ficou furiosa?      – Não – disse Paula entre risos – fingiu que não tinha sido nada e disse que se tinha desequilibrado.

Vera era tão mentalmente desequilibrada nesta sua ânsia de fingir que mandava em qualquer coisa que se tornava alvo de chacota de toda a gente. Claro que era Paula que iria sofrer as consequências. Uma manhã, Vera chegou e disse a Paula que não iria mais trabalhar no mesmo gabinete que ela (Vera tinha-se entretanto mudado para o gabinete do marketing) e que, como não havia mais gabinetes, ela teria de ir trabalhar para a redação. O seu objectivo era castigar Paula mas o único computador vago na redacção era entre Marília e Alice, basicamente de frente para mim e para Carlota. Claro que foi uma festa. A meio da tarde, Satanás chegou e, pela primeira vez, meteu-se nesta guerra estúpida criada pela dentes de rato. Se isto fosse uma empresa normal, com um patrão normal e pessoas normais, a vida pessoal e profissional seria separada. Satanás saberia que Paula era uma boa funcionária e que tudo isto não passava de uma embirração da sua amante/namorada/whatever porque queria mandar em qualquer coisa ou em alguém.

     – A partir de hoje – disse Satanás quando entrou na redacção – não vais mais trabalhar ao computador. Amanhã vais organizar os documentos de contabilidade que estão nos dossisers no gabinete do Rui. Amanhã ele trata tudo isso contigo.  E vais sentar-te naquela mesa.

Estávamos todos a ouvir e olhámos todos para o local. Era basicamente uma mesa no canto da redacção – longe de toda a gente – de frente para a parede que estava atafulhada de revistas, cópias e testes de páginas. E foi exactamente isso que Paula fez. O que ninguém pensava era que ela organizasse os documentos apenas num dia. E à falta do que fazer no dia seguinte e porque a guerra já tinha ido longe de mais, Satanás colocou-a com uma folha e uma caneta à frente. Vais pensar em ideias e temas para a revista, disse-lhe. E isto repetiu-se mais um dia. E outro dia. E outro dia. E outro dia. O objectivo era castigar Paula ou fazê-la sentir-se uma merda. Mas a coisa não funcionava assim tão bem porque com Satanás ausente durante o dia e o gabinete de Vera a ser do lado oposto ao da redacção, Paula passava o tempo a conversar com toda a gente e a rodopiar na cadeira. As novas miúdas da moda, que só lá estavam há pouco mais de um mês, estavam chocadas com esta situação Mesmo depois de lhes termos contado tantas outras coisas que tinham acontecido com outras pessoas. Uma delas entretanto, a meio do mês, foi-se embora. Eram três. E ficaram duas…

Estávamos constantemente a comentar que isto era um crime laboral. Que era bullying. Simulávamos situações imaginárias em que dávamos um pontapé em Vera e lhe partíamos os dentes de rato. Ríamos como loucos durante a manhã e tínhamos aprendido a disfarçar toda esta galhofa sempre que Vera aparecia. Irina uniu-se à causa de Paula e ganhou o hábito de dar um toque para o telemóvel de Carlota sempre que via Vera levantar-se do seu gabinete. Carlota fazia o sinal e toda a gente se calava. Vera entrava quinhentas vezes ao dia na redacção apenas para olhar para Paula e sorrir. Isto metia-me nojo. Não era nada comigo e sentia-me revoltada com toda a situação. Um dia, fomos informados que estávamos todos proibidos de falar com Paula durante o dia – provavelmente Vera apercebeu-se da brincadeira toda.

A violência do que estavam a fazer a Paula fez, temporariamente, com que toda a gente se unisse. Ignorámos a ordem de silêncio que nos foi dada. Até Marlene que nunca se tinha dado muito com Paula estava do lado dela. Eu pensava que isto fosse abrir os olhos de Marília ou que ela percebesse que a sua única sobrevivência ali era unir-se à equipa e tentar passar despercebida. Mas Marília continuava na sua luta pessoal contra mim e Carlota.

Isto durou sensivelmente duas semanas e Paula disse-nos, uma tarde, que ia desistir desta guerra porque nunca nada iria voltar a funcionar para ela. A não ser, claro, que Clarice voltasse e a dentes de rato se fosse novamente embora. Eu fiquei triste, mesmo triste por ela. Porque isto significava que Paula ia simplesmente aceitar a derrota e ia-se embora. Por outro lado, se fosse comigo, não sei se teria aguentado duas semanas com um papel e uma caneta à frente durante oito horas por dia.

Nessa tarde bateram à porta, entrou um tipo engravatado, mostrou a sua identificação e informou que estava para falar com a excelentíssima Vera Dentes de Rato e Dr. Satanás. Irina ligou para ele e informou-o de quem tinha chegado e disse-nos que tinha ouvido tantos gritos do outro lado que não tinha percebido metade. Na altura ainda não sabia, mas o padrasto de Paula trabalhava no ministério da administração interna. A dentes de rato foi falar com ele e, recebendo ordens de Satanás, aceitou todas as condições que foram impostas para a saída de Paula da empresa: iriam pagar-lhe o ordenado até ao final do contrato dela (que faltava 5 meses para acabar), iriam então formalizar o despedimento, Paula iria receber os papéis para o subsídio de desemprego caso precisasse mas, e esta é que foi a melhor vingança, até ao fim do contrato Paula não iria mais estar presente na empresa, com data a contar a partir do dia de amanhã.

Satanás aceitou tudo. Quando a dentes de rato saiu porta fora, provavelmente para ir ter com ele, fizemos uma festa. Rimos tanto, mas tanto. Paula contou-nos os pormenores da conversa que o seu padrasto tinha tido com eles, dos cinco meses de férias pagas que iria ter e da forma como a dentes de rato se engasgava e gaguejava porque não sabia o que dizer perante as alegações que o seu padrasto fazia.

Fiquei triste por Paula se ir embora. Mas feliz por ter conseguido uma vingança e uma saída tão boa. E foi um pequeno momento de felicidade que me fez esquecer as merdas que Marília me dizia e as ameaças constantes que me fazia. Naquele momento, senti que havia justiça para as pessoas que a mereciam.

E dois dias depois – enquanto terminávamos a revista desse mês, já sem Paula – houve justiça para mim. Naquele momento, depois de termos subido novamente os dois no elevador, odiei Satanás um pouco menos. Mas era mesmo isso que ele sabia fazer tão bem – jogar com as nossas emoções. Era provavelmente por isso que só queria trabalhar com mulheres.

E sim, Marília pediu-me desculpa. E pediu-me para recomeçarmos do zero.

Naquele momento em que, encostadas à bancada do café, ela balbuciava um pedido de desculpa, estava longe de imaginar que, meses mais tarde, iria ser eu a protege-la.

26 mil Horas Sem Matar o Patrão é uma crónica life-fiction que retrata o dia-a-dia numa revista. Toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Todas as segundas-feiras irá sair um novo capítulo.

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