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  • Foto do escritorHelena Magalhães

Saber separar a vida real da vida digital e o ódio que se fomenta atrás de um ecrã


Lembram-se de uma altura em que a nossa vida digital era uma persona da nossa vida real? Usávamos nicknames (como no mIRC) e havia uma vida privada e pessoal separada da vida digital porque não tínhamos interesse em misturá-las. O objectivo era apenas comunicar com outras pessoas. O meu nickname era lindo e tenho amigos que fiz nessa altura e com quem ainda hoje falo e que, volta e meia, ainda me chamam assim: attomik_kitty. Não me perguntem porquê. Estava a ver a MTV e passou a primeira música das Attomic Kitten (que ainda hoje ouço e está nos meus favoritos dos anos noventa porque sou eternamente saudosista na música), vi o nome da banda e como estava nesse exacto momento a lançar-me na magia do mIRC, pimba, ficou esse o meu primeiro nome digital.

O que é que isto interessa para o que quero falar? Nada. Só quis mesmo fazer-vos entrar no mood de uma altura da nossa vida em que não tínhamos necessidade de nos expor porque a internet era apenas uma forma fácil e divertida de meter conversa com os rapazes no canal da escola. Há teorias que dizem que o ser humano sempre se quis expor, só não tinha ferramentas para tal, tirando a culpa de cima das redes sociais e colocando-a em nós.


Do mIRC ao Hi5 e ao Facebook

A nossa vida virtual começou de forma humilde. Tínhamos que desligar o telefone para poder ligar o modem e entrar na internet para falar no mIRC durante a religiosa meia hora (que nunca cumpríamos) depois do jantar e, no fim do mês, ouvíamos os nossos pais pelas contas astronómicas de telefone. Mas tal como em tudo na vida, acabaram por chegar os planos ilimitados de internet e longa vida às noitadas a teclar no canal do grupo sobre tudo e sobre nada. E quando precisávamos de provas, imprimiam-se as conversas e levavam-se para a escola para se mostrar às amigas. Mal sabíamos nós que iriam chegar os prints que se iriam partilhar via telemóvel em segundos.

Mas, então, estar num canal cheio de gente anónima atrás de um nickname deixou de ter piada e passámos para o MSN, um chat através dos emails e onde, a dada altura, já podíamos escrever um pequeno status para mostrar aos outros como nos sentíamos. Só que os “outros” era apenas o grupo de pessoas que adicionávamos na nossa conta de MSN. Era tudo mais ou menos privado. Nenhum professor via os erros ortográficos que escrevíamos e nenhum patrão via a nossa fotografia da bebedeira de sábado à noite.

A nossa vida social começou a tornar-se um circo de exposição quando o Hi5 entrou pelos nossos computadores. Já podíamos partilhar fotografias, escrever parvoíces e fazer parte de grupos públicos tão estúpidos mas ao mesmo tempo hierarquicamente tão desejados como “as mais boas do hi5” e, sim, há algures uma fotografia minha em bikini porque eu cheguei ao patamar das “mais boas”. Que emoção.

No Brasil, os blogs já dominavam mas por aqui, o fotolog dava os seus primeiros passos e, sem que ninguém tenha tido grande consciência disso, a necessidade de exposição começou a tornar-se viral. Em 2004, eu criava uma conta no fotolog (que podem ver aqui porque obviamente apaguei a maioria das fotografias e deixei ficar meia dúzia como recuerdo) que iria durar até mais ou menos 2007, altura em que o Facebook passou literalmente a dominar.

Hoje, o Facebook, o Instagram e o Youtube comandam toda a nossa vida e vivemos em prol de ter coisas para mostrar. Agora vamos moldando a nossa pessoa de acordo com a forma como queremos ser vistos pelos outros, só que agora esses outros já não são o nosso círculo – amigos, família, colegas de escola ou de trabalho – e aquilo que está na base do ser humano (ser aceite, a procura pela aprovação e o medo do julgamento dos outros) e que na verdade sempre existiu, agora ganhou uma dimensão que foge totalmente ao nosso controlo.

Saber separar a vida real da vida digital

Nas horas que passo a deambular pelo Google a ler artigos, vim dar a este texto escrito no Linkedin que diz coisas interessantes e com as quais me identifiquei: hoje, longe da liberdade, a internet virou agência reguladora da nossa vida real e tudo o que dissermos, publicarmos e partilharmos será usado contra nós neste tribunal.

Isto é uma sátira mas tem um nadinha de verdade: tudo aquilo que fazemos na nossa vida digital é visto, opinado e escrutinado por qualquer pessoa. E sinto que pouca gente tem noção do impacto que a sua vida digital poderá vir a ter na sua vida real. Num mundo em que estar online é mais importante do que estar presente, há uma dificuldade gritante em se separar a vida real da vida digital.

Há uns tempos, recebi uma mensagem no Instagram (de uma conta falsa que alguém criou para tal) em que alguém decidiu opinar sobre toda a minha vida “virtual”.


E é difícil crer que alguém tenha tanto ódio dentro de si e tanta vontade em fazer um juízo de valor público. Pior ainda, alguém achar que por eu partilhar um programa de TV, uma planta, um chá, estou a partilhar a minha vida toda e essa pessoa conhece-me profundamente. Alguém que me diz que claramente tenho qualquer coisa muito mal resolvida porque, afinal, só falo sobre lugares comuns como o príncipe encantado. Falar sobre a exposição gratuita de celebridades e bloggers que se expõem em lingerie é, afinal, inveja por não ser como elas. E, pior, eu que sou uma bandeira dos bons costumes, afinal, sou uma merda porque roubo braços de plantas a vizinhos. Meu Deus, tanta coisa que esta pessoa sentiu vontade em expressar porque me conhece e sabe como sou.

Acho que sou das pessoas “digitais” que menos partilha da sua vida pessoal. Ninguém sabe o que faço, onde ando, o que compro, o que como, com quem estou, onde vou, com quem namoro, os meus pais, como me sinto ou como me visto. Ninguém vê o meu dia-a-dia. Veem o que a minha persona digital quer mostrar, quer seja plantas, chás, livros, séries, músicas, gatos, ou o que quer que seja.

Eu traço uma linha bem grossa entre a minha vida real e a minha vida digital. Até porque todos queremos ter uma posição social, certo? E hoje em dia isso está relacionado com aquilo que mostramos, as pessoas que conhecemos, as opiniões que damos e, em consequência, os likes que ganhamos. É a nossa reputação digital, por assim dizer. E eu quero manter a minha.

Uma reputação digital má pode significar uma reputação real igualmente má. É por isso que não me exponho de uma forma demasiado gratuita – porque isso vai condicionar a minha vida real e onde quero chegar pessoal e profissionalmente. É isso que genuinamente sinto mas respeito quem não o veja assim. Respeito quem gosta de tirar fotografias em cuecas. Respeito quem compra roupa para mostrar e depois vai devolver. Respeito quem vai a sítios só para se fotografar. Respeito quem partilha todas as suas dores publicamente. Respeito quem partilha tudo o que faz, onde vai e com quem está. Respeito quem partilha toda a sua relação e vida a dois. Respeito até quem faz as publicidades de Instagram com garrafas de vinho na rua, pacotes de leite na mala, cremes, máscaras e champôs por mais ridículo que isso seja e por mais tonta que essa pessoa digitalmente pareça. Respeito quem expõe cada peidinho que dá, por assim dizer.

Porque há uma diferença entre respeitar e concordar. Não concordo mas respeito. Porque é a vossa vida e não a minha. Ah, mas então porque estás sempre a falar sobre isso e a criticar quem tira fotografias em lingerie?

Porque gosto de falar e comunicar com as gerações mais novas que nunca viveram “antes” do digital. Gosto de abordar estes assuntos e de mostrar que há mais além de likes e roupas e maquilhagem. Gosto de sensibilizar para os perigos que a nossa imagem digital pode trazer à nossa imagem real.

Claro que o digital também tem o seu lado divertido e serve de plataforma para tanta boa gente como eu que, neste palco virtual, consegue partilhar a sua arte. Ao fim e ao cabo isto pode ser tudo um entretenimento. E na grande maioria das vezes, só partilho o lado divertido da minha vida. Só partilho os livros que leio, chás, músicas, plantas, gatos e a decoração da minha casa. Mas isto não é o espelho da minha realidade.

A grande e delicada questão – e é por isso que falo tanto sobre isto – é a necessidade de nos lembrarmos constantemente que não nos podemos iludir com o que vemos. Não podemos comparar as nossas vidas, a nossa aparência, as coisas que temos e a forma como vivemos. Não podemos odiar ninguém porque (virtualmente) parece ter uma vida perfeita.

E temos de ter consciência que a forma como nos expomos digitalmente para um público ilimitado vai ter impacto na forma como nos expomos na vida real. Posso ser a melhor no meu trabalho mas, se o meu patrão me vir em lingerie numa fotografia, será que me continua a ver com os mesmos olhos?

Se calhar não.

Pensem nisso…

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