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  • Foto do escritorHelena Magalhães

Sobre o bullying dos dias de hoje, ser bully e a história da Ana


Estava em arrumações no meu escritório e dei por mim a ver fotografias antigas e lembrei-me de uma rapariga que era da minha turma. O que hoje interpreto daqueles tempos (embora na altura pouca atenção tenha prestado) é de a ver sofrer bullying. Porque ela era um alvo fácil. Era a – vamos chamá-la assim – Ana. E porque andávamos todas com tanta coisa na nossa vida – os rapazes, as saídas, as festas e vá, de vez em quando também, os estudos – a Ana era apenas uma miúda com quem toda a gente gozava. Nós dizíamos “bolas, coitada” mas a nossa vida adolescente continuava.

O problema começou logo no facto de a Ana ter entrado para a nossa turma mais tarde quando já os grupinhos estavam formados. E ela acabou por se juntar (involuntariamente, imagino hoje) a outra rapariga da turma que costumava andar mais sozinha. Lembro-me dos rapazes chamarem a outra rapariga de Dinossauro – já podem imaginar porquê. E a Ana foi andando por ali, a passar meio despercebida mas bem visível o suficiente para, volta e meia, ser alvo de chacota pelas coisas mais estúpidas que podem imaginar, como o facto de ter pelos nas pernas. E quando numa aula de educação física um dos rapazes apontou para ela e disse que parecia uma macaca, a Ana passou a ser a Ana macaca, a amiga da Dinossauro. Toda a gente se riu. Eu também, eventualmente. Já não me lembro. Mas eu também tive a minha quota-parte de bullying e enquanto fosse com a Ana… não era comigo. Estes são apenas bocados fragmentados de lembranças que tenho dela.


As memórias que tenho da Ana ali até aos quinze ou dezasseis anos são praticamente destes episódios de bullying. Enquanto nós ansiávamos pelas sextas-feiras para ir às matinés do Bauhaus e do verão para os dias na praia de Carcavelos, não faço ideia do que a Ana fazia fora da escola porque ela também pouco ou nada convivia connosco. Ou nós é que não convivíamos com ela.


Entretanto metade da turma foi para ciências mas eu fui para humanidades e a Ana também. E talvez nessa altura ela se tenha tornado uma Ana diferente. Numa turma onde havia praticamente só raparigas e onde ela já não era a miúda que entrou mais tarde. Foi também nessa altura que comecei a dar-me mais com a Ana e, porque afinal morava ao pé de mim, a conviver com ela fora das aulas. E percebi que os pais da Ana lhe davam uma educação muito rígida e que isso provavelmente potenciou o facto de se ter tornado uma adolescente com o perfil de vítima deste sistema de bullying que sempre existiu nas escolas e no meio dos jovens. Enquanto eu tinha sido gozada por vestir roupas estranhas e ter um corte de cabelo ridículo à Natalie Imbruglia (falhado obviamente), isso pouco ou nada me afectou porque tinha o meu grupo de amigas e um bom reforço familiar com uns pais que sempre me incentivaram a ser como raio queria ser. Mas a Ana ouvia as coisas mais estúpidas que lhe diziam e tentava tornar-se o mais invisível possível, convivendo apenas com a outra rapariga da nossa turma. Mas foi nessa altura que pude observar melhor a vida da Ana e a pessoa que ela era. Quando fui a casa dela pela primeira vez, lembro-me de ficar chocada por estar tudo trancado à chave. Ela não tinha autorização para ir à sala ou ver televisão durante o dia. Os pais queriam que se concentrasse nos seus deveres. A Ana não podia ir ao cinema ou à praia ou à discoteca ou onde quer que fosse que nós – miúdas de dezasseis anos – queríamos ir.


Mais tarde – e já na faculdade – a Ana ficou no curso de outra rapariga que também era da nossa turma de humanidades – vamos chamá-la de Rita. E apercebi-me que o ciclo de bullying continuava ali. A Rita era a nova bully da Ana. Nessa fase da faculdade, saí muitas vezes com a Ana (que finalmente já tinha autorização para sair de casa à noite) e a Rita. Eu sempre me tinha dado bem com a Rita durante os nossos anos em humanidades e, mais uma vez, mantive-me espectadora das coisas a que assistia porque, não sei, naquela altura também era um bocado idiota e passiva. A Ana queria desesperadamente ser aceite, ou talvez ter um novo papel na sua nova vida académica, e tornou-se um fiel cão de guarda da Rita. Lembro-me de sairmos à noite e a Rita gozar com tudo – desde a roupa da Ana à forma como ela se comportava ou dançava. E eu acho que me ria. Eu podia não ser bully mas assistia passivamente a isso e tenho a noção do quão maldoso isso também é. A Rita dizia à Ana que já não havia lugar para ela no carro (mesmo quando havia) e a Ana arranjava forma de ir ter onde quer que estivéssemos. Nunca me preocupei muito em saber como é que a Ana ia ter connosco a bares em Lisboa ou discotecas no Estoril. Era como se tudo isto se passasse numa realidade paralela àquela em que eu vivia. E isto não é algo de que me orgulhe, como podem imaginar.


Eu acabei por me afastar da Rita nos anos seguintes – porque ela era manipuladora e egoísta, foi a tal que me deixou sozinha num concerto a ter um ataque de pânico no meio da multidão porque “oh meu Deus, lá estava eu com os meus chiliques” – e acabei por também perder o contacto com a Ana.


Neste momento, não faço ideia do que é feito da Ana, onde vive ou trabalha, se já é casada ou tem filhos ou mudou de país… Mas tenho pensado nela durante esta semana, talvez porque também dou algum foco ao bullying no meu novo livro com a personagem Marisa. A mim chamavam-me Bafo Metálico (por ter usado tantos aparelhos) e todas as variações que podiam existir daí. Mas não sei, não me lembro disso me ter incomodado tanto assim. Ficava chateada mas alguns segundos depois já estava a fazer qualquer outra coisa com as minhas amigas. Não me lembro de me preocupar tanto assim com a minha aparência ou a minha roupa ou a forma como os outros me viam. Se era feia ou bonita. Gorda ou magra. Alta ou baixa. Rica ou pobre. Com ou sem borbulhas. Por ter ou não roupas de marcas (não tinha, eu usava muita coisa em segunda mão ou que a minha mãe me comprava em feiras e era gozada mesmo por usar roupas espalhafatosas e bizarras). E com ou sem aparelhos nos dentes.

E a verdade é que o bullying sempre existiu, ganhou foi novos contornos (e perigos) graças às redes sociais. E o seu impacto também é agora muito maior porque os adolescentes têm a sua imagem escrutinada logo desde muito novos com a pressão que as redes sociais como o Instagram colocam nas suas vivências. Talvez a Ana tivesse sofrido ainda mais bullying nos dias de hoje porque, enquanto estava fechada na sua casa trancada a sete chaves, poderia ver nas redes sociais o que nós andávamos a fazer fora da escola. Talvez os rapazes lhe fossem chamar macaca em mensagens estúpidas no Facebook. Ou tirassem fotografias dela na escola e as publicassem para gozar.

O que quero dizer é que há muitas Anas por aí. As Anas vão sempre existir em qualquer geração. Se conheces uma Ana no teu emprego, faz qualquer coisa para marcar a diferença e para que o futuro dela nesse trabalho seja diferente. Se tens uma Ana na tua escola, impõe-te, ajuda-a, fala com ela, tenta conhecê-la. Podes ser uma agente de mudança e quebrar o sistema de bullying na vida dela. Não sejam a pessoa idiota e passiva que eu fui.


Por último, se te sentes uma Ana, lembra-te que a tua vida não é apenas isto que os outros te fazem sentir que é. Ser diferente vai sempre incomodar os outros. Não deixem que ninguém vos diminua porque, acreditem, há muito mais à vossa espera na vida.

© 2019-2023 Helena Magalhães. Todos os Direitos Reservados.

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